Notícia Você sabe o que é Ego Truck? Picapeiro sabe

Nos anos 90, sem internet, eu me atualizava sobre os movimentos do mercado mundial de automóveis de duas formas: quando ia cobrir salões internacionais ou, no dia a dia, com as revistas gringas. Gostava especialmente de Quattroruote (italiana), Sport Auto (alemã, mas eu só “folheava”) e Motor Trend (norte-americana).

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Acho que foi na Motor Trend que vi pela primeira vez a expressão “Ego Truck”. O termo designava a principal característica da recém-lançada Dodge RAM 3500 V10. Nada mais contundente para definir o motivo pelo qual a RAM era imbatível no design: a imponência da frente alta associava-se subjetivamente ao “ego” de ser uma picape bruta.

Essa geração — a segunda da RAM — foi lançada no final de 1993 e, de acordo com reportagens da época, buscou inspiração nas picapes Studebaker dos anos 50. A missão dada aos designers consistia justamente em criar uma “picape para macho”, com o perdão da expressão — os registros históricos assim a descrevem. Se eles acertaram? As vendas quadruplicaram, passando para 400 mil unidades em 1995.

Além do design, a versão 3500 V10 tinha outro atributo marcante: o motor de dez cilindros em V — primeira e única vez (creio eu) que foi usado em uma caminhonete. A engenharia da Chrysler pegou o motorzão V10 do Dodge Viper, deu uma amansada e instalou na RAM. Para incrementar ainda mais a aparência e, naturalmente, transmitir todo o torque de 62 kgfm às rodas traseiras, ela ganhou rodagem dupla no eixo de tração.

A RAM nunca foi a mais vendida de sua categoria — mérito que pertencia (e pertence) à Série F da Ford. Mas talvez fosse a mais desejada, pelo menos naquele período. Tanto que virou marca independente em 2010.

Quando testei a jamanta


Voltava de um evento realizado no estado do Alasca (lançamento do Volvo C70), e a conexão era em Los Angeles. Desdobrei a passagem e remarquei para dois dias depois. A ideia era testar a Dodge RAM 3500 V10 e vir embora. Já havia deixado tudo armado aqui do Brasil.

Além do motor V10 com 7.997 cm³ (488 pol³) e 300 cv, chamava atenção as duas rodas em cada lado do eixo traseiro, ampliando a bitola e exigindo o uso de para-lamas abaulados, projetados bem para fora da caçamba. O porte não era nada discreto: ela tinha 5,18 metros de comprimento — isso na cabine simples —, 2,38 m de largura (tinha três assentos, de tão larga) e 3,01 m de entre-eixos.

Foi só dar a partida e rodar alguns poucos quilômetros para notar o quanto ela era cobiçada pelos nativos, que pareciam adorar essa pura demonstração de “testosterona picapiniana”. Cada vez que eu parava pra abastecer — e foi mais de uma vez, óbvio —, alguém esticava o olho e abria um largo sorriso de aprovação.

Viajei de Los Angeles a Las Vegas naquela tarde. Na volta, no dia seguinte, fiz um roteiro mais longo, passando pelo Death Valley — um deserto salinizado que fica abaixo do nível do mar e, portanto, bem mais quente que a vizinhança. À beira da estrada, encontravam-se diversos tonéis de metal abandonados, de 4 ou 5 mil litros, usados no tempo em que não havia o hábito de os motoristas usarem coolant (aditivo à base de etilenoglicol), e os motores ferviam com facilidade. As autoridades deixavam água nesses reservatórios para salvar os motoristas. Não há nada nem ninguém por lá, de tão quente. Saí de Las Vegas com 20 ºC e, depois de rodar apenas 100 milhas (160 km), já estava 37 ºC. Mas há relatos de temperaturas acima de 55 ºC.

Aconteceu de tudo nessa curta viagem. Por ser um local ermo, aproveitei pra dar algumas arrancadas: a RAM 3500 gastava menos de 8 segundos no 0 a 100 km/h. Só que o ponteiro da gasolina mexia mais rápido que o do velocímetro. Eu já me comportava como um típico nativo: vidrão aberto, copo descartável de 700 ml de Coca-Cola no porta-copos no centro do painel, boné e música country bem alta (não que eu gostasse, mas era só o que o rádio sintonizava).

Parei para fotografar. Coloquei-a no acostamento e passei a rodear o veículo para clicar vários ângulos. Os poucos viajantes que passavam por ali gentilmente diminuíam a velocidade e perguntavam se eu precisava de ajuda, imaginando que a picape pudesse ter quebrado. Era cultural. Todos paravam. Imaginei o quanto essa estrada poderia ter feito vítimas no passado, visto que os motores esquentavam, não havia celular e, se não passasse ninguém, você fritava no deserto.

Volto para o carro, termino a Coca e ensaio curvas mais velozes. A RAM era tão desajeitada, saía tanto de frente e parecia um teste tão irreal para a natureza do carro… que logo desisti. De repente, passo por um animal largado no meio do asfalto. Parecia um cachorro, tipo um husky siberiano. Só que a pelagem era marrom. Havia outro correndo em volta dele, dando focinhadas, numa tentativa frustrada de acordá-lo. Podia ter sido atropelado. Ou apenas pereceu ali mesmo.

Parei uns 50 ou 70 metros adiante. Desci, dei alguns passos, saquei minha Nikon, pus a teleobjetiva 80–200 mm e focalizei os dois huskies para fazer a foto. Trouxe o focinho do cachorrão na janelinha da Nikon. Foi quando o cara resolveu mostrar os dentes e aprumar carreira em minha direção. Só tive tempo de me virar, sair em disparada e mergulhar no interior da picape. Bati a porta e subi o vidro, enquanto ele rodeava a picape com os caninos beeeeem à mostra. A RAM parecia grande demais pra ele: dei a partida e acelerei forte.

“Husky? Claro que não, estúpido! Essa porra é um coiote! E viúvo… deve estar p… da vida.”

Alguns quilômetros adiante, peguei um trecho da estrada com uma reta sem fim. Devia ter uns 12 a 15 km. Fixei a velocidade em 55 mph (88 km/h), liguei o controlador de velocidade e passei a contemplar a paisagem. O motor girava pouco acima de 1.200 rpm. Só que havia algo errado. Puro instinto, sei lá, difícil descrever. Comecei a achar algo estranho. Sabe a paranoia de sentir que “você tá sendo observado”? Olhava para frente, nada. Para os lados, nos retrovisores… nada, ninguém. Estava completamente sozinho naquele fim de mundo.Não, não estava.

Subitamente, surgiu um barulho ensurdecedor, tipo um estouro altíssimo. Só que o “bum” não parava. Para encurtar a história: existe uma base aérea ali perto, a Edwards Air Force Base (olha a ironia do nome). Um piloto gaiato, próximo da aterrissagem com seu F-16, veio planando silenciosamente e perdendo altitude. A uns 20 ou 30 metros de altura — ou 50 m, sei lá —, ele resolve, bem em cima da minha cabeça, dar motor. O coração veio na boca, a picape saiu da estrada, quando finalmente consegui discernir que o barulho vinha… de cima. Olhei para o alto do para-brisa da RAM e vi a língua de fogo saindo do rabo daquele desgraçado. Foi o maior susto que tomei na vida! Está na cara que os pilotos da US Air Force se divertem aprontando essa pegadinha com os motoristas.

Já chegando a LA, engatei atrás de dois SUVs por uns 3 km. Eles vinham costurando animadamente em uma daquelas vias elevadas. Era espantoso como eu tinha muito mais motor do que eles. Mais motor e mais juízo, aliás, já que sempre poderia haver algum patrulheiro escondido atrás de um outdoor… rs. Tirei o pé.

No dia seguinte, fui conhecer a cidade. Rodei o dia todo. No final da tarde, devolvi a picape no aeroporto e por lá mesmo fiquei. Percebi o quanto os americanos estavam ambientados a veículos desse tamanho. No Brasil, você apanha para rodar com uma picape dessas: ela não cabe na faixa, fica espremida nas ruas de mão dupla, não cabe nas vagas de shoppings. Lá, não. Picapes full size são “a praia deles”. As vias, as vagas, tudo foi concebido considerando o porte desses veículos.

A RAM V10 nunca foi importada oficialmente para cá. Mas a paixão que os norte-americanos nutriam por ela certamente contaminou outros povos. No Brasil, hoje, a marca RAM vende mais do que Peugeot, BMW ou Mercedes. Ego por ego, o das trucks continua lá em cima.

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